"O dia em que Freud não morreu"
Gláucia Leal
Passados 75 anos da morte do
criador da psicanálise, suas idéias ainda influenciam profundamente as
maneiras de pensar e entender o mundo – mesmo que nem sempre seja
possível perceber isso de forma consciente. Pode-se concordar ou
discordar dele e até mesmo odiá-lo. Mas é impossível a qualquer pessoa
bem informada permanecer indiferente à sua obra
Um pesquisador dedicado e culto, reconhecido por professores e colegas mais experientes, que – sem grandes sobressaltos – certamente construiria uma sólida carreira acadêmica.
Perspicaz e produtivo, na segurança do laboratório é muito possível que fizesse descobertas dignas do aplauso de seus pares.
Essas comprovações, realizadas com rigor, poderiam ser replicadas e obviamente teriam seu valor, oferecendo sustentação a achados posteriores, úteis para o avanço científico.
Talvez nada realmente transformador, mas sem dúvida importante.
É provável que esse fosse o caminho mais seguro e óbvio a ser seguido.
Mas não foi o escolhido por Sigmund Freud.
Ele mostrou, até por meio das próprias decisões, que o mundo (interno e, consequentemente, externo) escapa à lógica – é “psico lógico”.
Não por acaso Freud tornou-se uma das figuras mais controversas do século passado.
Em A interpretação dos sonhos, de 1900 – considerado um marco na criação da psicanálise – ele apresenta idéias que deixaram de pernas para o ar muitas das teorias até então vigentes sobre o ser humano e seu funcionamento psíquico.
Em uma sociedade aparentemente recatada, onde falar sobre sexo (e admitir que o assunto merecia ser tratado com atenção) era um tabu, Freud ousou fazer afirmações consideradas, na época, inconvenientes e escandalosas acerca da sexualidade – até mesmo de crianças pequenas.
Disse, por exemplo, que a boca é uma zona erógena e que o prazer desfrutado pelo bebê no ato de sugar é sexual.
Falou ainda de algo, no mínimo, incômodo: a existência de uma instância psíquica inconsciente que aflora e se faz conhecer por meio de sonhos, atos falhos, sintomas.
Essa proposição – que mudou a relação do homem consigo mesmo, com a cultura e a arte e com o próprio corpo – é considerada a terceira das grandes feridas narcísicas da humanidade.
A primeira é a afirmação de Copérnico de que a Terra não é o centro do universo: é o planeta que gira em torno do Sol. Essa idéia nos leva à conclusão de que nenhum de nós, terráqueos, está no umbigo do mundo.
O segundo golpe vem com Darwin e sua teoria, que aproxima o homem de outros animais e o coloca ao lado deles na cadeia evolutiva.
E, por fim, Freud fala desse âmbito inescrutável que mora em nós e nos move em direção a sentimentos, escolhas e atos tantas vezes estranhos em nós.
Em busca da escuta do inconsciente, o médico de almas apresentou a homens e mulheres, estarrecidos diante de sua ousadia, uma clínica revolucionária, que se embasava na cura pela palavra, pela associação de idéias que se ligavam umas às outras e terminavam por trazer à tona os conflitos que escapavam à consciência.
Passados 75 anos de sua morte – causada por um câncer que se arrastou por muito tempo –, seus conceitos foram lidos e relidos, revistos e esmiuçados, retalhados, ampliados, discutidos.
E nem sempre compreendidos.
Quando um aluno, colega ou amigo pouco habituado à obra de Freud comenta o quanto ele deixou de lado em sua teoria ou foi marcado por idéias hoje ultrapassadas, embora vigentes em sua época, tendo inicialmente a concordar.
De fato, Freud não explica tudo, ao contrário do que prega o senso comum.
Aliás, não explica mesmo: antes, ensina a suportar que o saber, tanto de si quanto do outro, pode ser construído por meio da experiência, da elaboração – e, assim, abre caminho para desdobramentos da teoria.
Pode-se concordar com Freud ou discordar.
Ou até mesmo odiá-lo.
De qualquer forma, uma coisa é certa:
é impossível a qualquer pessoa bem informada ficar indiferente ao criador da psicanálise e a sua obra.
Sete décadas e meia
depois de sua morte,
Freud ainda incomoda.
E continua em questão.
fonte:
blogs.estadao